É um grande equívoco pensar que a essência da fé não esteja na prática do amor fraterno. Alguns ensinaram que somente a fé — ou seja, a confiança vazia na própria salvação — seria suficiente, e que as boas obras seriam dispensáveis ou, no máximo, um complemento1. Contudo, essa ideia sugere, de maneira errônea, que a graça da fé é recebida apenas pelo intelecto, sem mover a vontade, nem ter um efeito real sobre nosso comportamento, pensamento e conduta.
Os defensores de tal ideia argumentam que, se a fé se manifestasse por meio de nossos atos, isso nos permitiria vangloriar de nós mesmos, e que as ações de bondade devem ser praticadas apenas para glorificar a Deus, sem qualquer expectativa de que por meio disso nos aproximemos Dele e, consequentemente, da salvação.2
Há quem defenda, inclusive, a possibilidade de pecar forte e deliberadamente3 contanto que se confie ainda mais na misericórdia de Cristo, o que, por consequência, tornaria a prática de boas obras inútil. No entanto, essas construções teóricas são fruto de uma mente desprovida da revelação divina, não passando de mera especulação que colide com a verdade sagrada.
As Escrituras nos alertam:
A transformação interior do ser humano, capacitado pelo Amor Divino à prática da fraternidade e da caridade, é o que torna a fé plena, autêntica e útil para a salvação. Sem isso, a fé é estéril, não passando de uma mera ideia infrutífera e sem vida, e onde não há vida não pode haver a graça de Deus: "Assim como o corpo sem a alma é morto, assim também a fé sem obras é morta." (S. Tiago 2:26).
As boas obras são essenciais para a fé.
Essência de algo é aquilo que o define e sem o qual ele se torna outra coisa.
Crer sem praticar os preceitos da fé a transforma numa mera devoção destituída de propósito útil. De maneira análoga, se a fé fosse uma árvore, teria que produzir bons frutos, isto é, as obras de bondade. Isso porque a fé cristã é ativa e se manifesta por meio do amor fraterno, da conciliação, da renúncia, da paz e da partilha.
Fé sem obras é nula e inoperante.
Como uma causa que não produz é nula e corrompida, assim é a fé incapaz de produzir os necessários atos de bondade. Deus reconhece, mede e julga a fé por meio das ações daqueles que, além de crer, praticam os mandamentos da fé: "Queres ver, ó homem vão, como a fé sem obras é estéril?" (Tiago 2:20).
O segundo mandamento, "amar o próximo", é inseparável do primeiro, "amar a Deus". Quem não ama o próximo não cumpre o primeiro mandamento, pois quem ama a Deus lhe obedece. E o amor fraterno é prático, nunca teórico: "Se alguém disser: 'Amo a Deus', mas odeia seu irmão, é mentiroso. Porque aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê." (1 S. João 4:20).
O amor fraterno não é "obra humana", mas o próprio Amor Divino que se realiza através de cada um de nós, não havendo mérito humano nosso nele do qual nos possamos vangloriar. Até porque, para praticá-lo é necessária a humildade que se alcança quando renunciamos a vaidade, a soberba e a vangloria.
As Escrituras confirmam que o amor fraterno é também fonte abundante de graça a ser considerada no Juízo Final. O santo apóstolo Paulo, ao condenar as "obras da lei" se refere a rituais e preceitos que não partem da fé nova em Cristo, mas da fé antiga atrelada a velha lei de Moisés, distinguindo esta das obras de bondade, que são fruto da Nova Aliança com Deus, que nos lembra da recompensa que Ele dá ao aos que efetivamente praticam sua justiça. Não a justiça da lei antiga, mas a justiça da Lei Nova que se assenta no amor a Deus e também ao próximo, como demonstrado por Cornélio, cujo ato de dar esmolas foi lembrado. (Atos 10:4). "Diante de Deus, nosso Pai, pensamos continuamente nas obras da vossa fé, nos sacrifícios da vossa caridade e na firmeza da vossa esperança em nosso Senhor Jesus Cristo, sob o olhar de Deus, nosso Pai." (1 Tessalonicenses 1:3).
Ademais, a fé não é licença para pecar.
Pelo contrário, é o remédio que move o indivíduo em direção ao aperfeiçoamento, fazendo-o renunciar ao prazer destrutivo do pecado pela alegria da salvação, levando-o a abandonar os vícios e a buscar as virtudes, dentre estas, a conversão, o arrependimento, a partilha, a fraternidade, a tolerância, a compreensão e o bem-querer a todos.
Aquele que professa ter fé, mas vive deliberadamente no pecado, aceitando-o sem qualquer reprovação em sua consciência, engana a si mesmo e não segue a verdade.
Quando não praticamos a fé, deixando de integrá-la a nossa realidade, somos desonestos com Deus e conosco.
Não se pode servir a Deus e ao pecado, pois a amizade com Deus exige ao menos uma postura de não querência, uma inimizade a tudo o que é mal. Ainda que se sustente serem as obras de bondade simplesmente uma forma de louvor a Deus, deixar de praticá-las seria, então, uma falha que revela a ausência premeditada de obediência, o que por si só, já resulta em grave pecado a nos condenar diante Dele. Quem não ama está morto espiritualmente e não O conheceu.
Por outro lado, aquele que ama e manifesta esse amor por meio de ações, demonstra que o Deus Vivo habita nele. A fé que não produz frutos é, portanto, insuficiente para nos reconciliar com Deus: "Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor." (1 S. João 4:8).
1 "Em primeiro lugar, que nossas obras não nos podem reconciliar com Deus e obter graça; isso, ao contrário, sucede apenas pela fé," (CONFISSÃO AUGUSTANA, Lutero. Art. 20).
2 "Ensina-se, ademais, que boas obras devem e têm de ser feitas,56 não para que nelas se confie a fim de merecer graça, mas por amor de Deus e em seu louvor." (CONFISSÃO AUGUSTANA, Lutero. Art. 20)
3 Carta de Lutero à Felipe Melanchthon, em 1.521: “Se você é pregador da graça, prega a graça verdadeira, não fingida; se a graça é verdadeira, tenha a certeza de que se trata do pecado verdadeiro, não do fingido, porque, Deus não salva pecadores fingidos. SEJA PECADOR E PEQUE FORTEMENTE, MAS CONFIA E SE ALEGRE MAIS FORTEMENTE AINDA EM CRISTO VENCEDOR DO PECADO, DA MORTE E DO MUNDO. HÁ DE PECAR ENQUANTO VIVAMOS AQUI. Esta vida não é a morada da justiça, senão que, como disse Pedro, estamos à espera de novos céus e de nova terra em que habite a justiça. Basta que pela riqueza da glória tenhamos conhecido o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo; DESTE NÃO NOS SEPARARÁ O PECADO, INCLUSIVE AINDA QUE FORNIQUEMOS E MATEMOS MILHARES E MILHARES DE VEZES AO DIA. Por que é que crê ser tão mingado o preço da redenção de nossos pecados, pago por tão grande e bom cordeiro? (No Dia do Apóstolo São Pedro, ano 1.521. par. 12.)