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 Para muitos1, a palavra escrita ou Escrituras, se apresenta como a única fonte de Revelação, o elo único entre o céu e a terra. No entanto, ao olharmos para a figura central de nossa fé, Jesus Cristo, somos confrontados com uma intrigante ausência: Se a Palavra Escrita é a única a revelar Cristo, por que então, Ele próprio não deixou um único escrito de seu punho? Essa situação suscita reflexões profundas, pois se a autoridade divina se restringe apenas ao que está grafado, então: 

  1. A ausência de um "testamento" de Cristo: Como poderíamos conceituar somente a Bíblia como Palavra de Deus, se o próprio Deus, enquanto entre nós como homem, nada deixou escrito?
  2. O silêncio do Verbo: Se a fé cristã se revela unicamente pela escrita, seria o próprio Cristo, que nada escreveu, uma fonte de revelação incompleta?
  3. A autenticidade da Doutrina: Sendo Deus o Autor do Livro Sagrado, não seria esperado que o Deus Encarnado, Cristo, assinasse sua obra, autenticando sua Doutrina e confirmando tudo o que Dele se escreveu?

Mas Em Contrário: A Voz da Revelação que Transcende a Escrita.

 As próprias Escrituras nos convidam a uma perspectiva mais ampla, que transcende a mera literalidade da letra: “Povos, escutai! Nações, prestai-me atenção! É de mim que emanará a instrução e a verdadeira religião que será a luz dos povos.” (Isaías 51, 4) “Ouça à minha instrução; escute as palavras da minha boca.” (Isaías 1, 27) 


Solução: Cristo, é a Luz e o Testemunho Vivo de Deus.

 Cristo não veio ao mundo para ser um escriba, mas a própria Luz de Deus2 (João 8,12), a encarnação da Palavra que ilumina todo a humanidade (João 1,9; Lucas 2,32). Sua vinda, profetizada nas antigas Escrituras, não se deu para adicionar páginas a um livro, mas para cumprir e dar testemunho visível e audível daquilo que sobre Ele se escreveu. Ele revelou o que estava oculto por meio de seus lábios, sua imagem, seus sinais e seus milagres, confirmando na realidade concreta e no testemunho ocular da carne e do sangue tudo o que Dele havia sido dito e escrito: “Escutai, ó meu povo, que eu vou falar: Deus, o teu Deus, sou Eu.” (Salmo 49,7). Não convinha a Cristo caligrafar seus ensinamentos, e podemos discernir, ao menos, quatro razões fundamentais para isso: 


As Quatro Razões para o Silêncio Escrito de Cristo:

PRIMEIRA: A Autoridade Divina do Verbo Encarnado. Cristo ensinava de Sua própria boca, com a autoridade de um Deus que não precisava de respaldo externo, senão em Si mesmo. Ele é a Sabedoria Encarnada, o Verbo de Deus (João 1,1; Provérbios 2,6). Seus contemporâneos admiravam-se: “Os judeus se admiravam e diziam: Este homem não fez estudos. Donde Lhe vem este conhecimento das Escrituras?” (São João 7,15). “Ensinará ele próprio o conhecimento de sua Doutrina.” (Eclesiástico 39,11). Cristo não veio para ser mais um profeta que descrevia Deus por ouvir falar. Ele veio para revelar Deus em Si mesmo, sem precisar descrevê-lo: “Quem vê a mim vê ao Pai. Como dizes: Mostra-nos o Pai?” (São João 14,9); “Eu e o Pai somos um.” (São João 10,30). Em Cristo, a Palavra de Deus se fez carne, não tinta e papel. SEGUNDA: A Autoridade Conferida à Sua Igreja. Para não anular a autoridade que conferiu à Sua Igreja. Se Cristo tivesse deixado escritos de próprio punho, poderia se pensar que Sua autoridade se restringiria a esses textos, tornando a Igreja, por Ele edificada sobre os Apóstolos (Efésios 2,20-22), desnecessária no plano da salvação. A Igreja, à qual foram dadas as Chaves que ligam céus e terra, é a coluna e o sustentáculo da verdade (I Timóteo 3,15), a guardiã e intérprete infalível das Escrituras e da fé. “E Jesus disse: E se recusar ouvir também a Igreja3, seja ele para ti como um pagão e um publicano.” (São Mateus 18,17-18); “Quem vos ouve, a mim ouve; e quem vos rejeita, a mim rejeita; e quem me rejeita, rejeita Aquele que me enviou.” (São Lucas 10,16). Como ensinou Santo Irineu de Lyon (c. 125-202): “A pregação da Igreja é verdadeira e firme, e nela há caminho único e idêntico em todo mundo. A ela foi concebida a Luz de Deus, porque a sabedoria de Deus, com a qual salva os homens, fala com segurança.” (Contra as Heresias, vol. IV, par. 20,1, p. 329). TERCEIRA: A Tradição Apostólica e o Magistério Eclesiástico. Para demonstrar que Sua autoridade transcende a letra escrita, manifestando-se também na Tradição Apostólica e no Magistério Eclesiástico. As Escrituras registram: “Jesus fez ainda muitas coisas, que se fossem escritas uma por uma, penso que nem o mundo inteiro poderia conter os livros que se deveriam escrever.” (São João 21,26). Embora nada tenha escrito, Cristo agiu com plena autoridade e propósito: “Em tudo o que fizeste conserva a tua autoridade.” (Eclesiástico 33,23). Essa autoridade oral foi transmitida por Ele aos Apóstolos e, por estes, à Igreja: “Espero ir ver-te em breve e então falaremos de viva voz.” (III São João 1,14); “Ficai firmes e conservai os ensinamentos que de nós aprendestes, seja por PALAVRAS, seja por CARTA nossa.” (II Tessalonicenses 2,15). A Igreja não é apenas a voz que transmite as Escrituras, mas as Escrituras são, por sua vez, a síntese da memória escrita da Igreja. Ambas são inseparáveis, pois a fé não se pode ter em partes, mas no todo. QUARTA: A Contemporaneidade e o Magistério Vivo e Progressivo. Por causa da contemporaneidade de Seus ensinamentos e mandamentos. O papel e a letra são estáticos, mas a manifestação da autoridade Divina é constante na história humana. Questões atuais – como pesquisas com células-tronco, uso da energia nuclear, eutanásia, doação de órgãos e proteção ao meio ambiente – obviamente não existiam na época dos escritores sacros. Por isso, Jesus confiou ao Sacrossanto Magistério o governo das coisas futuras, por meio daqueles que, investidos na Cátedra de Pedro, devem orientar os fiéis em situações vindouras. Jesus não antecipou aos Apóstolos tudo, pois “Muitas coisas ainda tenho a dizer-vos, mas não as podeis suportar agora.” (São João 16,12), mas revelaria à Igreja no tempo oportuno: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos.” (São Mateus 28,20). O Magistério, então, orienta a vivermos as Leis Divinas em nossa época, sem o risco de desrespeitá-las. A Encíclica Samaritanus Bonus e o Catecismo da Igreja Católica nº 2.277, por exemplo, guiam-nos a não pecar contra a vida recorrendo à eutanásia; a Laudato Si’ orienta a proteção ao meio ambiente, dentre outras questões surgidas na era moderna. Como ensinou Santo Agostinho: “A respeito do SENHOR e seu CORPO, sabemos que algumas vezes é dito “CABEÇA” e “CORPO”, isto é, Cristo e a Igreja, COMO UMA SÓ PESSOA. Ele, como noivo, colocou-me um diadema na cabeça, e adornou-me de enfeites, como sua noiva.” (Doutrina Cristã, Cap. 31 I r. 44 p. 116). Assim, a autoridade da cabeça (CRISTO) é exercida através do corpo (IGREJA); e o que convém ao corpo, convém à cabeça, tanto quanto o que convém ao noivo (CRISTO) convém à noiva (IGREJA): “Eu te mostrarei a noiva, a esposa do Cordeiro” (Apocalipse 21,9); “[…] pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o chefe da Igreja, seu corpo, da qual ele é o Salvador.” (Efésios 5,23); “Assim, de ora em diante, as dominações e as potestades celestes podem conhecer, pela Igreja, a infinita diversidade da sabedoria divina,” (Efésios 3,10), no que se respondem as questões acima. 


A Complementaridade da Revelação

  1. Os judeus possuíam as Antigas Escrituras dos Profetas, mas a interpretação da tradição rabínica, na qual as liam, ofuscava-lhes as verdades sagradas. Quando Cristo esteve entre eles, muitos não O reconheceram: “Vós examinais profundamente as Escrituras julgando encontrar nelas vida eterna, mas são elas mesmas que dão testemunho de mim. E vós não quereis vir a mim para que tenhais vida.” (São João 5,39); “O Verbo era a verdadeira Luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. Estava no mundo e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu. Ele veio para os seus, mas os seus não o receberam.” (São João 1,10-11). Dessa forma, Cristo não precisava dar-lhes novas Escrituras de seu próprio punho, mas substituir a interpretação distorcida da tradição pela Tradição que tem na Igreja sua guardiã: “Ouvimos dizer que Jesus de Nazaré há de destruir este lugar, e há de mudar as tradições que Moisés nos legou.” (Atos 6,14); “Por que violais os preceitos de Deus por causa de vossa tradição?” (São Mateus 15,3); “Por isso, até o dia de hoje, quando leem Moisés, um véu cobre-lhes o coração.” (II Coríntios 3,15). Assim, a tradição dos rabinos restou substituída pela Tradição Apostólica, através da qual as Escrituras devem ser cridas e lidas: “Intimamo-vos, irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que eviteis a convivência de todo irmão que leve vida ociosa e contrária à tradição que de nós tendes recebido.4” (II Tessalonicenses 3,6).
  2. Como disse Agostinho5, Cristo não se divide da Igreja, que é seu Corpo e sua Esposa Mística. Assim, Ele batiza, salva, faz milagres, pratica caridade, ministra sacramentos, oferece o sacrifício do Amor Eucarístico, ensina, ordena sacerdotes, perdoa os pecados e instrui, entre outras coisas, através da Igreja. Logo, é através da Igreja e pela Igreja que Jesus "escreveu" o Novo Testamento pelas mãos dos Apóstolos, como "escreveu" o Antigo pelas mãos dos Profetas e Reis de Israel.
  3. A assinatura de Cristo nas Escrituras está na fé da Igreja, pois muitos livros de diversas religiões se dizem a única verdade Divina. Todavia, acreditamos que as Escrituras expressam essa verdade porque fazem parte dos tesouros da Igreja edificada pelo próprio Cristo. Por isso, ensinou Agostinho: “[…] eu não creria no Evangelho se a isso não me levasse a autoridade da Igreja Católica.” (Contra a Carta de Mani 5,6). Em um Matrimônio Sagrado, a ESPOSA (Igreja) e o Esposo (Cristo) são um só Corpo, não havendo divórcio entre eles, razão pela qual, “[…] Jesus disse: Se recusar ouvir também a Igreja, seja ele para ti como um pagão e um publicano.” (São Mateus 18,17-18).

Conclusão

Em suma, a aparente ausência de escritos pessoais de Cristo não diminui, mas eleva a compreensão da Revelação Divina a além da letra escrita. Ela nos convida a reconhecer que a Palavra de Deus se manifesta em plenitude na Pessoa de Jesus Cristo, na Tradição viva da Igreja e no contínuo discernimento do Magistério. A Revelação não é um livro fechado, mas uma verdade dinâmica, que se desdobra e se faz presente na história, guiando os fiéis através dos tempos pela luz de Cristo, a cabeça de seu Corpo Místico, a Igreja. 


NOTAS EXPLICATIVAS 

  1. Lutero, em “Fórmula da Concórdia. Suma III; Artigos de Esmalcalde, art. II, segunda parte, 15, Livro da Concórdia”.
  2. Porque o mandamento é LÂMPADA; e a Lei é LUZ,” (Provérbios 6,23); “Eu sou a luz do mundo”, disse Cristo. (São João 8,12); “Luz para revelação aos gentios, e para glória de teu povo, Israel.” (São Lucas 2,32); “Porque o Senhor é o nosso JUIZ, e nosso LEGISLADOR.” (Isaías 33,22); “A Luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas que a LUZ, porque as obras desses homens eram más.” (São João 9,5).
  3. Verbo ou Logos, no grego (λόγος), significa a personificação da Palavra, dos Mandamentos, da Sabedoria e da Ciência de Deus.
  4. Autoridade esta, reconhecida desde os antigos, nos primeiros séculos do cristianismo: “Com efeito, deve necessariamente estar de acordo com ela (Igreja), por causa de sua origem mais excelente, porque nela sempre foi conservada, de maneira especial, a Tradição que deriva dos Apóstolos.” (Santo Irineu de Lyon, Contra as Heresias, Livro IV, par. 3,2, p. 147, anos 125-180). “Deve-se amar com zelo extremo o que vem da Igreja. Ela é definitivamente o caminho de acesso à vida, e todos os outros são assaltantes e ladrões que é mister evitar.” (Santo Irineu de Lyon, Contra as Heresias, Livro IV, par. 4,1, p. 147, p. 148).
  5. “[…] edificados sobre o FUNDAMENTO DOS APÓSTOLOS E PROFETAS, tendo por pedra angular o próprio Cristo Jesus. É nele que todo EDIFÍCIO, harmonicamente disposto, se levanta ATÉ FORMAR UM TEMPLO SANTO no Senhor. É nele que também vós outros entrais conjuntamente, pelo Espírito, na ESTRUTURA DO EDIFÍCIO que se torna a HABITAÇÃO DE DEUS.” (Efésios 2,20-22).
  6. Sagrada Escritura é a Palavra de Deus redigida. Sagrada Tradição são os ensinamentos da Palavra de Deus que não estão apenas nos escritos, mas também na Liturgia das Primeiras Missas, nos ensinos das orações e rezas mais antigas da Igreja, no Catecumenato, nos Catecismos do primeiro século do Cristianismo (Didaqué), nos sinais deixados nas paredes das Catacumbas (nossas primeiras Salas de Catequese e Templo), nas Cartas e Mensagens escritas pelas Comunidades desde o tempo dos Apóstolos, nas Decisões Doutrinárias dos Concílios (“Nas cidades pelas quais passavam, ensinavam que OBSERVASSEM AS DECISÕES QUE HAVIAM SIDO TOMADAS PELOS APÓSTOLOS E ANCIÃOS EM JERUSALÉM.” Atos dos Apóstolos 16,4), na arqueologia e em parte da Patrística que é a Filosofia da Igreja, entre outros meios de comunicação verbal ou não verbal da Palavra. Quanto à Sagrada Tradição, ela transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos até nossos dias, a Palavra de Deus confiada por Cristo e pelo Espírito Santo aos Apóstolos para que, sob a luz do Espírito de verdade, eles, de forma sobrenatural e extraordinária, fielmente a conservem, expusessem e transmitam. (Catecismo da Igreja Católica, § 81).
  7. Catecismo da Igreja Católica, § 85: “O ofício de interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou transmitida foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo”, isto é, foi confiado aos bispos em comunhão com o sucessor de Pedro, o bispo de Roma. Os fiéis, lembrando-se da palavra de Cristo a seus apóstolos: “Quem vos ouve a mim ouve” (Lc 10,16), recebem com docilidade os ensinamentos e as diretrizes que seus Pastores lhes dão sob diferentes formas. Todavia, o Magistério não está acima da Tradição, nem das Escrituras, mas sim, a serviço deles. § 890: A missão do Magistério está ligada ao caráter definitivo da Aliança instaurada por Deus em Cristo com seu Povo; deve protegê-lo dos desvios e dos afrouxamentos e garantir-lhe a possibilidade objetiva de professar sem erro a fé autêntica. O ofício pastoral do Magistério está, assim, ordenado ao cuidado para que o Povo de Deus permaneça na verdade que liberta. Para executar este serviço, Cristo dotou os pastores do carisma de infalibilidade em matéria de fé e de costumes. O exercício deste carisma pode assumir várias modalidades. § 891: “Goza desta infalibilidade o Pontífice Romano, chefe do colégio dos Bispos, por força de seu cargo quando, na qualidade de pastor e doutor supremo de todos os fiéis e encarregado de confirmar seus irmãos na fé, proclama, por um ato definitivo, um ponto de doutrina que concerne à fé ou aos costumes. A infalibilidade prometida à Igreja reside também no corpo episcopal quando este exerce seu magistério supremo em união com o sucessor de Pedro”, sobretudo em um Concílio Ecumênico. Quando, por seu Magistério supremo, a Igreja propõe alguma coisa “a crer como sendo revelada por Deus” como ensinamento de Cristo, “é preciso aderir na obediência da fé a tais definições”. Esta infalibilidade tem a mesma extensão que o próprio depósito da Revelação divina.
  8. Porquanto, quem obedece a toda a Lei, mas tropeça em apenas uma das suas ordenanças, torna-se culpado de quebrá-la integralmente.” (São Tiago 2,10).
  9. Santo Agostinho, Doutrina Cristã, Cap. 31 I r. 44 p. 116.

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